8 de jun. de 2012

Transformações

ombros curvados pelos ossos desgastados pelo tempo
os pés com os dedinhos encolhidos como a se protegerem
mãos enrugadas, mas ainda fortes, mas os dedos cheios de imperfeições denunciam o avanço da artrite
a voz suave e trêmula como a de uma criança indefesa, no entando cheia de sabedoria e suavidade
os olhos cobertos por uma camada fina de pele, brilham como os de uma criança
ela se levanta e dá para sentir o esforço que faz para se firmar e ir em frente
por um momento penso que vai desistir, mas que nada, ela se apoia na pequena bengala de madeira companheira inseparável, e segue pela casa como se ainda precisasse provar algo a si mesma
continuo a observá-la, e a vejo pegar um pano seco e começar a tirar o pó da mobília da casa
ela cantarola enquanto faz isso, a voz sai tremulando pela casa, numa cantiga antiga que tento reconhecer, mas não consigo
sem me conter, pergunto o porque de querer fazer aquele trabalho que parece tão penoso fazer face os efeitos da doença em seu corpo entrevado.
Ela se vira e me olhando nos olhos fixamente como para me impedir de desviá-los e responde simplesmente que se parar morre, e ela precisa viver
depois disso, se perde em pensamentos e fala da garota peralta que era, do trabalho pesado que fez durante toda a vida, de como era ágil, rija e forte, de como não tinha tempo para nada que não fosse trabalhar, trabalhar e trabalhar
de como nunca ou quase nunca lhe sobrou tempo para curtir os filhos, os netos, porque precisava sempre correr para garantir a subsistência
de repente ela suspira profundamente e diz que hoje seu corpo não obedece a sua mente, e que ao se olhar no espelho não vê a pele enrugada e esmaecida, olhos sem brilho e fragilidade, ela vê a jovem que foi um dia, a jovem que sentia poder mudar o mundo, e fazer tudo o que quisesse
porém ela aceita o hoje, onde o simples levantar da cama é um suplício e uma vitória que consegue
fala da felicidade que sente hoje em poder ficar com a família, cercada pelos filhos, netos, bisnetos, pela cachorra e dois gatinhos carinhosos que tem
aquela resposta simples, e a aceitação dela sobre sua atual situação me comove e me faz admirá-la ainda mais, pois percebi que ela enfim encontrou o equilíbrio que todo ser deve ter para ser feliz
não vi naqueles olhos nenhum resquício de revolta, raiva ou rancor
fiquei quieta longos momentos absorvendo aquela história e tentando descobrir de onde surgia a força e serenidade que nutria o corpo e a alma daquela biza de mais de 80 anos, totalmente  fragilizada pela degeneração normal do passar dos anos, mas tão evoluída espiritualmente.
ela então me olhou e disse: a fé nos faz forte e nos leva a superar nossos piores temores
só sabemos exatamente a força que temos quando a incapacidade física nos fragiliza a ponto de necessitar do outro. Nesse momento, percebemos que não somos ilhas, não somos independentes como pensamos. Somos simplesmente seres frágeis e amedrontados
o desconhecido nos apavora e o medo de morrer é mais apavorante ainda pela sua definitividade. Por isso, hoje deixei de ser ilha e sou o ninho que acolhe os que me rodeiam e comemora cada pequena vitória como se fosse a última.
Ouvindo tudo aquilo, eu só pude olhar naqueles olhos num mudo consentimento, e admirá-la, porque as palavras eram desnecessárias frente a tanta certeza, tanta fé.

 Val Araújo

3 comentários:

  1. Oi Val, muito lindo, e a realidade de muitas que chegam a essa fase da vida, umas resistindo, outras, já se entregando, devido a tantas lutas. Tomara que eu consiga chegar como essa bisa, do seu poema...é a sua bisa ou se inspirou em outra?

    beijinssss

    nil

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  2. Olá, adorei seu blog... ta lindoooo... o que acha de trocarmos links???
    Ja está linkadissima lá no meu... da uma passadinha por lá.
    Bjo grande, Dany.
    www.brechotresjolie.blospot.com

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    1. Oi Dany. Que bom que gostou. Já vou seguir vc sim. beijão.

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